segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Educação na era da informação

    Para quem cursa alguma graduação na área de informática deve ter se deparado com uma disciplina teórica chamada "Ciência da Informação". O objetivo da disciplina é dar uma visão geral e filosófica dos conceitos que são utilizados na Informática, especialmente para quem vai trabalhar com programação e desenvolvimento de sistemas. Um programador atento lida com esses termos diariamente, talvez sem se dar conta do que significam realmente. Por outro lado, é muito comum dizer que vivemos a Era da Informação e que a informática mudou os paradigmas do ser humano e da educação. Mas afinal, o que é Informação? Em que isso se relaciona com  educação?

    O primeiro conceito que a gente se depara é com o conceito de dado. O dado é uma representação simples e abstrata sem nenhum tipo de tratamento ou análise.  Por exemplo, 250 milhões de habitantes é um dado puro e simples, sem nenhuma análise. Pensando bem, nesse caso o dado é esse conjunto de nove símbolos numéricos "250 000 000" que representa uma quantidade e não a quantidade em si mesma. O dado é uma representação e sozinho não nos serve pra nada.

    Por outro lado, o dado pode ser manipulado, processado. E é isso que fazem as calculadoras e processadores de dados, como os computadores de pequeno e grande porte. Como exemplo, vamos tomar o dado "125 milhões de mulheres". Suponha que você quer saber qual a proporção de mulheres nessa população de habitantes. Basta pegar o dado de 125 milhões e dividir por 250 milhões e você vai chegar ao valor de 50%. Em outras palavras, metade da população de habitantes é composta por mulheres. Esse processamento simples pode ser realizado também com o auxílio de uma calculadora ou computador. Porém, processamentos muito mais complexos estão disponíveis nos dias de hoje e até gratuitamente. Um processador pessoal consegue realizar por volta de 3 bilhões de cálculos simples por segundo. Bem mais rápido que qualquer ser humano, contudo a análise depende do objetivo o usuário e do que ele pretende concluir. Mas afinal, e o que é informação?

    A informação nada mais é do que o dado processado por um sistema de processamento de dados ou simplesmente por um ser humano. Até um ábaco pode ser utilizado nesse processo. Evidentemente que existem conjunto de informações muito complexas acerca de assuntos complicados. Para chegar a essas informações pode ser necessário um grande volume de dados e uma grande capacidade de processamento. Nesse âmbito, levanto duas questões. A primeira: como esses sistemas são modelados? A segunda: o que fazer com essas informações?

    Um sistema que processa dados oriundos de uma análise sanguínea pode auxiliar um médico a identificar uma patologia em fase inicial de desenvolvimento, antes mesmo dos sintomas começarem a ser percebidos pelo paciente. No entanto, esse sistema é modelado, projetado e desenvolvido para atuar na área médica, de acordo com conceitos médicos preexistentes. Quando digo "diabetes", uso um termo médico que pode se valer de elementos quantitativos processados por sistemas de informação, como a quantidade de açúcar no sangue do paciente. Nesse sentido, o sistema é muito mais uma extensão do médico, do que um tipo de médico. O esquadro nunca vai ser um tipo de arquiteto, por mais complexo que seja seu funcionamento. Com isso quero chegar que o sistema de informação nada mais é do que um conjunto de elementos que atendem a modelos preexistentes. Por outro lado, resta a  segunda pergunta.

    Lembra que informação é um conjunto de dados processados? Qualquer tipo de informação pode ser utilizada (ou não) com diversas finalidades. É perfeitamente possível utilizar um conjunto de informações para lesar alguém ou alguma instituição. Desse modo, por mais abundante que seja o conjunto de informações nos dias de hoje, isso não significa que a sociedade tenha atingido um estado de amor e benevolência mútua. Nesse ponto apresenta-se um âmbito ético: o que fazer em determinada situação com a informação obtida. E mais uma vez, a ética não é uma questão de informação, de volume de dados. Não! A ética é um comportamento adquirido ao longo da trajetória dos indivíduos. E a educação tem muito a ver com isso. Não interessa à educação formar e excelentes usuários de informações, mas sim seres humanos. Uma coisa não nega a outra, claro. Mas o foco tem que ser dado ao que importa. E manipular habilmente grande volume de informação não é sintoma de que um indivíduo ou sociedade foi muito "bem educado".

    A questão central do dado, do processamento e da informação é que informação não é conhecimento e conhecimento não é ética. Para entender melhor isso, podemos traçar um longo caminho através da psicologia, mas não nesse post. Resumidamente a psicologia nos leva a entender que a maioria das operações psíquicas são atômicas. O conceito é um ente atômico, indivisível. Quantas partes tem o conceito "cavalo"? Uma só... Aqui não estou falando do corpo do animal, mas do conceito. Quantas partes tem a sensação de calor?  Uma só... O indivíduo vivencia a sensação como um troço indivisível. A mesma coisa vale para a imaginação, para o raciocínio, para a percepção e para diversos fenômenos psicológicos, inclusive para a vontade. Quando o humano exerce alguma atividade, a vontade age atomicamente e não por partes. Esse tipo de coisa foi bem explorado pela Escola da Forma ou Gestalt, como é conhecida. Se notarmos bem, o processador de informações, por mais rápido que seja, não é atômico. Isso difere enormemente dos processos tipicamente humanos de lidar com conhecimento. Mais ainda com a ética. Aliás, vamos falar um pouquinho de ética.

    No recreio quando um aluno decide agredir um colega, não é falta de informação que está em jogo. Ali ele já detém o suficiente: um conjunto de emoções evocadas pelo ambiente e uma reação fruto de uma decisão. Ajudar nossos alunos a lidar melhor com esse evento, entendendo essas emoções e tomando decisões mais acertadas de acordo com as circunstâncias, isso sim, pode ser um dos elementos centrais da educação. Claro, muito mais pode ser adicionado a isso. Mas se trata de um fenômeno muito mais humano e humanizador do que adestrar nossos alunos no uso de técnicas. Você pode dizer: "Ah, mas tem o prof. Fulano da Universidade tal que disse que o cérebro e tal, tal, tal..." Bom, não é meu objetivo aqui deslegitimar esse ou aquele profissional. Mas como professor e estudante, entendo que o ser humano é muito mais do que um super processador de informações. Reduzir o ser humano a um incrível computador é ajuntar mais incompreensão sobre esse curioso animal. E não é esse o objetivo da ciência, não é mesmo?

    Além disso, tornar a criança um usuário profissional de sistemas processadores de dados pode ser necessário nos dias de hoje. Mas não podemos esquecer que isso por si só não é sinônimo de educação. A educação passa muito mais por fenômenos qualitativos que não são abrangidos pela simples manipulação das tecnologias que nos cercam. Pode ser até um propósito difícil de ser alcançado na prática, mas ao menos dá aos seres humanos um tratamento mais de acordo com as suas características.

Que haja educação!

Referências:
Dado, Informação, Conhecimento e Competência



domingo, 26 de junho de 2022

A música do século XX

    O século XX abre as portas para uma sociedade com novas características. O século das duas guerras mundiais é também caracterizado por diversos avanços tecnológicos e artísticos. Nesse âmbito, surgem compositores como Stravinsky e Schönberg, que lançaram as bases de novas sonoridades.

    Etimologicamente, a palavra “moderno” vem de modo hodierno, isto é, ao modo de hoje. Assim os antropólogos e musicólogos denominaram esse período da história, majoritariamente decorrido na primeira metade do século XX.

    De uma forma geral é bastante difícil unificar a sonoridade do século XX. Enquanto um Bartok estava debruçado sobre a música nacional e modal, um Schönberg se preocupava com mecanismos de dissolução da tonalidade. Isso levou o século XX a uma riqueza inventiva na arte musical antes nunca vista.

    Dodecafonismo foi como ficou conhecida a técnica propulsionada por Schönberg. Consistia basicamente em desenvolver a música a partir da criação de uma série de 12 notas em que qualquer construção tipicamente tonal, como arpejos e escalas, fosse abolida. Tanto a harmonia, quanto a melodia são oriundas dessa série, que funciona como princípio gerador da obra. Nesse contexto é que são aplicadas diversas operações de manipulação da série, como inversão, retrogradação etc.

    O contraponto dodecafônico da primeira metade do século XX é, basicamente, linear, lembrando, nesse sentido, o contraponto renascentista. O Contraponto dodecafônico segue, em primeiro lugar, a ordem intervalar da série, não deixando, no entanto, de considerar a qualidade dos intervalos harmônicos, resultante da sobreposição das linhas melódicas. Readquirem importância os meios tradicionais de estruturação contrapontística, tais como cânone, inversão, retrogradação, aumentação e diminuição. Deixa de existir, na prática, o dualismo tradicional consonância-dissonância, que cede lugar a um critério mais tímbrico da qualidade dos intervalos (emancipação da dissonância). KOELLREUTER (1996) p. 17

    Por outro lado, em Bartok chama a atenção o uso de dissonâncias livres, como observa SEARLE(1954). O seu famoso Mikrokosmos está cheio disso desde o começo. Por exemplo, a pequena peça “Reflexão” inicia-se com uma 7ª não preparada. Ao considerar uma peça a duas vozes, se trata de algo bastante não convencional. Da mesma maneira no “Movimento Contrário”, aonde uma 16ª nas notas extremas se mostra bastante áspera, embora alcançada por movimento contrário por graus conjuntos. Além disso, tal intervalo é precedido pelo intervalo de 14ª, que por si já apresenta uma certa aspereza. A tudo isso soma-se o fato de a melodia superior figurar uma espécie de dó jônico enquanto a inferior uma espécie de dó lídio. Essas características conferem um sabor à pequena, que embora pequena, configura-se claramente como sonoridade do século XX.

    Um outro importante indivíduo responsável pela construção da sonoridade do século XX foi Stravinsky. “Considero a música essencialmente incapaz de expressar o que quer que seja (...)” Com essa frase, Stravinsky se coloca em uma posição estética anti-romântica, que colocava a arte como expressão de sentimentos, ideias etc. Esse posicionamento ficou conhecido como neo-classicismo. Apesar disso, ao longo de sua carreira, Stravinsky bebeu em fontes diversas e sua obra é de tal forma diversificada que defini-la é tarefa delicada.

    A história da música nos revela como a harmonia se desenvolveu ao longo dos séculos e mostra também como o espírito criador do ser humano é bastante fecundo, apesar de atrelado à sociedade em que momentaneamente vive. Nesse sentido é imprescindível observar que o estado final da música não está nunca alcançado. É sempre um eterno desenvolvimento.

domingo, 12 de junho de 2022

Harmonia no Romantismo: pitadas de estranheza no classicismo

    A palavra “Romântico”, que vem de “romano” foi usada inicialmente para categorizar a literatura fantástica. Como no caso do Rei Arthur ou Ivanhoé, era comum que o romance descrevesse uma aventura ocorrida durante a Idade Média. Nesse sentido, o romance seria algo que se afastaria do mundo real com uma imaginação fecunda. Por outro lado, para alguns, o romantismo adiciona ao conceito de belo algo de estranheza. Desse modo, a arte romântica acaba por diferenciar-se da arte clássica devido a um maior grau de afastamento do concreto e doses maiores de "estranheza".

    Se tomarmos a história da música como um fio condutor em que a harmonia evoluciona de acordo com o ambiente estético e estilístico da época, essa nova “harmonia romântica” precisaria adicionar pitadas de "estranheza" e um certo grau de afastamento do mundo concreto. Assim é que surgem os acordes e os modos alterados, as imprevisíveis cadências de acordes e principalmente o uso mais amplo do cromatismo.

    O cromatismo já vinha sendo utilizado desde Bach e até mesmo antes por compositores renascentistas italianos, mas no Romantismo, especialmente em Wagner ele se torna parte estrutural da harmonia, um artifício que no fundo tentava atender aos princípios tipicamente românticos de expressão dos sentimentos por meio de uma tensão constante. Claro que o Romantismo enquanto período histórico é bastante plural em suas manifestações. É por isso que ao mesmo tempo que simultaneamente encontramos um Brahms –fiel seguidor de Beethoven- encontramos também um Wagner levando o ideal romântico às últimas consequências.

    Especificamente, a  harmonia do Romantismo acrescenta novas possibilidades harmônicas. Em contraste com uma harmonia clássica mais clara e simplificada, a harmonia romântica usufrui de uma série de acordes que até seriam estranhos, por assim dizer, à harmonia clássica. Para Brisolla (2008) “Com o desenvolvimento do romantismo, a tonalidade sofre um novo abalo com a revivescência de antigas escalas modais e dos acordes decorrentes do conceito harmônico dessas escalas e, ainda, com a alteração dos acordes tradicionais.”

    Já para Koellreuter (1986), “o subjetivismo romântico (...) enriqueceu consideravelmente a harmonia dos compositores clássicos, pela cromatização (...) e pelo uso amiudadamente repetido da modulação, libertando cada vez mais o acorde de sua condição funcional e ampliando, desse modo, o conceito de tonalidade.” O autor entende que é essa dissolução progressiva do tonalismo vai dar origem ao impressionismo e mais tardiamente no dodecafonismo. É justamente essa dilatação tonal no campo da harmonia, essa “estranheza” é que vai originar a 4ֻª lei tonal.

A 4ª lei tonal e o Romantismo

1- Alteração de modo
Um acorde pode ser alterado de maior para menor e vice-versa, sem prejuízo na manutenção da tonalidade. Nesse caso não se considera alteração do acorde, mas sim alteração do modo.

2-Acordes oriundos do modo eólio e dórico.
O modo eólio e dórico oferecem novas possibilidades harmônicas, como por exemplo um dominante menor e seus relativos. É possível realizar alterações cromáticas ascendentes e descentes em quaisquer alturas em um acorde.

3- Alteração no acorde de Tônica
Como a alteração na fundamental ou quinta do acorde produz uma mudança de função, só é possível alterar propriamente a terça do acorde.

4- Alteração do acorde de Subdominante
Da mesma forma que no acorde da Tônica, a única alteração possível ocorre na terça, isto é, alteração de modo.

5- Alteração do acorde de Dominante
Já o acorde da dominante se mostra o mais flexível, admitindo inúmeras alterações. Apesar disso, a 5ª é geralmente o intervalo mais alterado nesses acordes.

    O que o Romantismo traz em termos de harmonia são novas possibilidades. Apesar disso, tais novas possibilidades não abandonam absolutamente o tonalismo, apenas o expandem de forma significativa, levando seus princípios às últimas consequências. O educador atento, o músico atento vão notar que a percepção desse fato enriquece a experiência musical, trazendo novos universos sonoros à realidade individual dos alunos e do público.


domingo, 5 de junho de 2022

Existe educação musical?

        Há três coisas em que todos são especialistas. Uma delas é o futebol. Mesmo aqueles que nunca puseram o pé na bola são capazes de redigir verdadeiros tratados futebolísticos que abordam desde estratégias de jogo até o regulamento do esporte. Com a política não é muito diferente. Todos nós temos arraigadas opiniões nos mais diversos aspectos dessa nobilíssima arte. Contudo o buraco é ainda mais fundo quando se trata de educação.
        Educação é uma palavra que suscita a reflexão de quase todos os filósofos da história. Não seria por acaso que os indivíduos tenham suas próprias opiniões sobre o assunto. E das mais diversas. Claro que não há nenhum problema nisso. Afinal, o ser humano é um ser pensante. Apesar disso, ninguém nunca se pergunta sobre o que é a educação de fato. Ao menos nunca ouvi tal questionamento. Mas o que é educação?
        Há diversos sentidos para a palavra educação. Por exemplo, a experiência. Os mais velhos por terem mais experiência estão mais preparados para certas situações do que os mais novos. Será que não poderíamos dizer que estão mais educados? Há pessoas que viajaram mundo afora e conhecem diferentes culturas. Não são essas pessoas também muito educadas? E os cientistas que, como Fausto, passaram sua vida dedicados aos estudos e possuem conhecimento aprofundado de certos assuntos?
        Paralelamente, sabe-se que a escola é uma tentativa de cultivar a educação sistematicamente. Ao contrário das viagens, das leituras e das experiências de vida, a escola busca atingir um objetivo muito específico e com otimização de recursos. O que pode levar décadas na vida pessoal de um indivíduo, na escola tem que acontecer dentro de um certo tempo e de certa maneira. Assim, os conteúdos são organizados, as aulas são cronometradas e o rendimento dos alunos é medido. Ao contrário da vida, o artificialismo do sistema educacional não oferece espaço à espontaneidade. É sua característica.
        Quando indagado se o brasileiro possui educação financeira - um conceito da moda- , o famoso bilionário brasileiro Luiz Barsi exclamou: "se você vive abaixo do que ganha, está perfeitamente educado financeiramente. O que falta é cultura de finanças." 
        Ao me deparar com essa frase de um pragmatismo absoluto, imediatamente percebi que a educação não é só a obtenção de um conhecimento. Claro, podemos estudar profundamente um assunto e isso vai ser, sim, educação num certo sentido. Mas existem premissas para que isso ocorra. Por exemplo, se um aluno simplesmente não pratica seu instrumento, não vai se desenvolver musicalmente. Além disso, mesmo que um aluno atinja grande conhecimento do assunto, ainda pode se tornar um déspota, como aconteceu inúmeras vezes no século XX: homens indubitavelmente cultos, mas também perversos. Assim a tarefa do professor não seria somente "dizer" a matéria, mas também motivar o aluno a um tipo de comportamento que favorecesse seu desenvolvimento, além de outras coisas mais.
        Pode-se considerar, inclusive, que um aluno que desenvolva a habilidade de buscar seus objetivos consiga fazer isso em qualquer dimensão da sua vida. Dessa forma, a educação não se trata simplesmente de aprender -e ensinar - matemática ou português. Se trata de desenvolver as capacidades humanas em diversas dimensões para que o ser humano seja aquilo que está projetado para ser: humano. E o que tem a música a ver com isso? 
       A verdade é que fazemos música, pois somos seres humanos. A dimensão da espontaneidade, da intuição, do subjetivo são também dimensões humanas que podem ser desenvolvidas na educação. Infelizmente, a música e a arte são colocadas meramente como soluções para problemas de outra ordem. Se o aluno tem dificuldade em matemática, certamente a música o ajudará a desenvolver o raciocínio. Se o aluno tem TDAH, a música vai desenvolver sua concentração e memória. E por aí vai...
        Essas ideias, embora verdadeiras, escondem o papel coadjuvante que querem entregar às artes e à música. É por isso que quando uma criança tem dificuldade em música, ninguém diz: "é bom estudar matemática para aumentar sua capacidade musical." A primeira solução que se encontra, geralmente é imaginar que a criança não tem jeito ou dom para aquilo. A segunda é sugerir o abandono da atividade. Atitude absolutamente impensável em outras disciplinas escolares.
        Ademais, a aula de música pode ser até um estímulo negativo. Por exemplo, se o professor começar a incutir a inveja nos alunos, apontando uns como melhores que outros, isso tenderá a estimular a concorrência e desunião dos alunos que no longo prazo se torna absolutamente prejudicial. Ou mesmo nos casos em que a aula de música desenvolve mal estar em sala de aula, da mesma forma que em outras disciplinas. Aliás, tudo depende muito da forma como se ensina.
        Sou da tese de que qualquer professor de qualquer disciplina pode "tratar" um desvio como o TDAH ou TOD. Ou melhor: lidar. Não que ele seja médico ou psicólogo. Nada isso. Mas um professor atento vai saber utilizar recursos que desenvolvam concentração, atenção, raciocínio e memória, independentemente da disciplina que ministra. A música por si só não pode fazer muita coisa, principalmente se a instituição educacional não adota uma metodologia didática. Além disso, na maioria das vezes o aluno tem contatos semanais de curta duração com a música, o que não poderia ser considerado um tratamento.
       Nesse sentido, não há educação musical. O que há é educação humana. A presença da arte no corpo da cultura e da educação está ligada muito mais ao desenvolvimento de habilidades e características propriamente humanas do que à apagamento de incêndios oriundos da uma educação inadequada e deficiente. Resta saber se os seres humanos estão preparados para isso.
        Que haja música!

sábado, 28 de maio de 2022

Acordes de Empréstimo I

        Se você acompanhou os posts anteriores sobre harmonia, percebeu que já falamos sobre funções harmônicas e dominantes secundárias. O uso de dominantes secundárias é uma forma de incrementar a harmonia, trazendo alguns acordes além do campo harmônico. É possível incrementar a harmonia ainda mais com a presença de acordes de empréstimo.

        No tonalismo a princípio existem dois modos: o maior e o menor. Claro que existem outros modos, como os advindos da teoria modal clássica, além da possibilidade de criação de modos artificiais pelo compositor. O céu é o limite. Lembre-se que o ouvido é que deve orientar o desenvolvimento e a incrementação da harmonia. Uma teoria que simplesmente não conecta suas ideias com o som, acaba se tornando um vazio exercício de abstração.

        Observe os dois modos em dó:

        Dó maior

Dó maior



        Dó menor:


        A primeira coisa que podemos observar é que temos dois conjuntos bem distintos de acorde. Na verdade, nos dois conjuntos nenhum acorde se repete. Caso você esteja em dó maior, pode ampliar a tonalidade acrescentando ou substituindo novos acordes. Por exemplo, pode substituir o acorde da dominante (sol maior), por um acorde menor (sol menor). Às vezes quando se deseja evitar o trítono presente no acorde da dominante sem fundamental, utiliza-se o acorde de empréstimo. Isso nos permite "condimentar" a harmonia com novas especiarias harmônicas.

        É preciso observar que a trama musical não é simplesmente uma trama harmônica. Na realidade, a harmonia, quando presente, é apenas uma parte dessa trama. Isso quer dizer que incrementos harmônicos podem ser complementados com incrementos de outra ordem, como no ritmo ou na melodia. Mais uma vez é o criador que vai decidir como combinar esses elementos. Para tal pode se valer da experiência, da análise de obras anteriores e do conhecimento técnico.


        No exemplo acima, o acorde de ré menor foi substituído pelo acorde meio diminuto. Também o acorde de Fá maior foi substituído pelo acorde de Fá menor. Ambos os acordes vieram do modo menor. Agora é possível que o acorde seja alterado sem modificar sua terça. É o caso do acorde dominante (sol maior) que no segundo exemplo apareceu com uma décima terceira menor, embora o trítono ainda estivesse presente. Nesse acorde, a décima terceira menor é oriunda do modo de dó menor. As possibilidades são infinitas, portanto não é como prescrever todas as soluções possíveis aqui. Seria muito extenso e desnecessário. Contudo, vale a pena experimentar as diversas possibilidades.

sábado, 21 de maio de 2022

A arte do Som

        O ser humano possui diversas dimensões. Possui a dimensão ética, a dimensão religiosa, a dimensão
científica entre outras. A dimensão artística é a dimensão do fazer, do organizar as coisas para atingir um certo objetivo. Ao longo dos séculos, os homens foram cada vez mais especializando-se em seus fazeres artísticos e suas obras de arte se tornaram cada vez mais vultuosas. Na arquitetura ao longo dos séculos tivemos inúmeras demonstrações de como o espírito humano é capaz de alçar longos vôos criativos para simplesmente ser ser humano.

        Cada segmento artístico conta com uma direção bem específica na arte mais recente. Assim, a pintura lida com as cores e formas visuais, a culinária com os odores e paladar, a poesia com as palavras e por aí vai. Mas existe um tipo de arte muito específico que lida com os sons em sua forma mais pura. Não é a arte da oratória. É a arte da música.

        Etimologicamente falando a palavra música vem do grego "musa", assim como "museu". As musas eram seres mitológicos, cujas habilidades estavam relacionadas cada uma à um tipo de arte ou sabedoria. Assim havia a musa da história, a da geometria, a da aritmética etc. Na realidade, entre as musas antigas dos gregos não havia uma dedicada especifica e unicamente à arte dos sons, mas haviam algumas que estavam sempre associadas ao canto ou a execução de instrumentos. É o caso de Euterpe que portava um diaulos, uma antiga flauta grega de dois corpos executada com ambas as mãos.

        Ao longo da história a palavra música se referiu a diversos fenômenos diferentes. Quando se pega os textos de Platão, você entende que a palavra música não diz respeito à arte dos sons, mas sim a algo que hoje seria semelhante ao termo "educação e cívica". Apesar disso, é muito comum ouvirmos dizer que Platão exaltava o ensino de música, como se música fosse a arte dos sons. Isso não é exatamente verdade. A arte dos sons fazia parte da educação platônica, mas pertencia a um corpo maior de disciplinas e assuntos que recebiam o nome de Música, afinal as musas possuíam diversas habilidades diferentes, como aritmética, geometria e filosofia.

        Já na Idade Média, nos deparamos com um novo conceito de música. Quando se lê os textos sobre música de Boécio e outros pensadores, imediatamente notamos que a palavra "Música" remete a uma espécie de ciência especulativa específica que trataria da organização do mundo, dos quais o assunto "organização dos sons" fazia parte, mas não era o assunto central. Ali podemos notar palavras como harmonia no seu sentido mais amplo e não no sentido musical que hoje atribuímos. De todo modo, já é uma postura diferente diante da arte dos sons em comparação aos antigos pensadores gregos.

        Mas foi no decorrer da Idade Média que a arte dos sons foi ganhando cada vez mais essa preponderância. Ali surgiram os primeiros tratados de técnicas de organização sonora que mais tarde ficaram conhecidas com o nome genérico de harmonia ou contraponto. E foi justamente na segunda metade da Idade Média que tivemos as primeiras composições musicais por assim dizer. Não é que não compusessem música antes. Mas agora teríamos um especialista técnico capaz de combinar os sons numa linguagem absolutamente específica e de certa forma livre de influências diretas. Antes era mais comum a alteração e modificação de "músicas" já pré-estabelecidas como numa forma de tradição viva, acrescentando-lhe, modificando ou suprimindo-lhe elementos.

        Ao chegar no Renascimento Musical, essas atividades e técnicas já estavam bem estabelecidas, de maneira que os músicos da Renascença levaram a arte dos sons ao seu mais esplêndido potencial, fruto do desenvolvimento oriundo dos séculos anteriores. Apesar disso, a música ainda recebia um forte apelo vocal, já que as vozes humanas ainda eram os instrumentos mais flexíveis, com maior capacidade técnica e também expressiva. Mas foi ali que começou a proliferação da música enquanto arte sonora pura, sem apelo das palavras e da poesia. Não que não houvesse isso antes, apenas os renascentistas deram a esse segmento um contorno e valor antes nunca vistos. As obras de Downland, por exemplo, mostram a engenhosidade dessa música.

        Cada vez mais a música se firmava como a arte pura dos sons e não só favoreceu, como foi favorecida pelos diversos avanços da lutheria e técnicas de construção de instrumentos. Quando o piano foi inventado, por exemplo, ainda não era possível que um instrumento de tecla pudesse soar forte ou fraco de acordo com o toque dos dedos do instrumentista. Assim o piano veio para resolver essa dificuldade. E quanta música maravilhosa foi criada para esse instrumento desde então? Os concertos de Mozart, as Sonatas de Beethoven, as Baladas de Chopin só para citar algumas obras...

        É verdade que o leigo na maioria das vezes possui um conceito de música que está mais ligado à poesia e ao cantar, na maioria das vezes. Talvez porque esse gênero esteja mais adequado ao âmbito de suas práticas e fazeres musicais. E é a partir daí que geralmente surge o conceito de música instrumental. Como se a "música mesmo" fosse aquela feita com palavras e poesias e a música instrumental fosse um tipo a parte de música. 

        O primeiro ponto que se pode observar é que nos corredores leigos não é costume ouvir música a Capella, como diversos gêneros corais. A música "cantada" que o leigo ouve é acompanhada por diversos instrumentos. Embora esse fato pareça corriqueiro à maioria das pessoas, basta um ouvido um pouco mais atento para notar que retirando-se completamente os instrumentos, modifica-se significativamente o caráter da música em questão. Já imaginou uma Bossa Nova sem seu instrumento acompanhador? Não que isso seja impossível, muito pelo contrário. Mas a presença do instrumento solidifica o gênero musical como um todo.

        Em segundo lugar, podemos admitir a música como uma linguagem que se sustenta através de símbolos representados por combinações sonoras. Já não é mais aquela arte múltipla dos gregos que concatenava ao mesmo tempo encenação, oratória, poesia, canto e dramaticidade. Não! Agora a música é uma arte independe que se assenta sob os princípios do som e das relações entre eles. Isso é muito bem observado por Hegel, por exemplo, que percebe na música um caráter de abstração tal que não é possível relacionar a nada de concreto propriamente. Nesse sentido, não é a expressão  "Chega de saudade" isolada que nos causa a emoção na famosa canção de Vinícius de Moraes. É muito mais o jogo de sons que combinados vão produzir um sentido musical que nos afeta enquanto ouvintes e enquanto intérpretes. Bastaria modificar as notas, ritmos e outros aspectos musicais para perceber que a expressão "Chega de Saudade" ganharia um sentido absolutamente diverso.

        Se a Música é uma linguagem e está absolutamente ligada ao jogo de combinações sonoras, temos que outros aspectos deverão nortear o seu juízo ou o que chamaríamos de crítica musical. Não é papel aqui dizer que um tipo de música seja melhor que outro não é isso. Mas se vamos submeter a música a algum tipo de senso crítico, quer seja para encontrar seus valores e significados, devemos nos ater ao funcionamento da música enquanto arte dos sons. E enquanto arte dos sons, a música é regida pela relação dos sons e não por aspectos externos a isso. Querer submeter a Música a um tipo de juízo extra-musical é absolutamente amarrar-lhe as mãos, amordaçar-lhe a boca e pedir que lute e argumente. 

Que haja som! Que o som fale!