sábado, 21 de maio de 2022

A arte do Som

        O ser humano possui diversas dimensões. Possui a dimensão ética, a dimensão religiosa, a dimensão
científica entre outras. A dimensão artística é a dimensão do fazer, do organizar as coisas para atingir um certo objetivo. Ao longo dos séculos, os homens foram cada vez mais especializando-se em seus fazeres artísticos e suas obras de arte se tornaram cada vez mais vultuosas. Na arquitetura ao longo dos séculos tivemos inúmeras demonstrações de como o espírito humano é capaz de alçar longos vôos criativos para simplesmente ser ser humano.

        Cada segmento artístico conta com uma direção bem específica na arte mais recente. Assim, a pintura lida com as cores e formas visuais, a culinária com os odores e paladar, a poesia com as palavras e por aí vai. Mas existe um tipo de arte muito específico que lida com os sons em sua forma mais pura. Não é a arte da oratória. É a arte da música.

        Etimologicamente falando a palavra música vem do grego "musa", assim como "museu". As musas eram seres mitológicos, cujas habilidades estavam relacionadas cada uma à um tipo de arte ou sabedoria. Assim havia a musa da história, a da geometria, a da aritmética etc. Na realidade, entre as musas antigas dos gregos não havia uma dedicada especifica e unicamente à arte dos sons, mas haviam algumas que estavam sempre associadas ao canto ou a execução de instrumentos. É o caso de Euterpe que portava um diaulos, uma antiga flauta grega de dois corpos executada com ambas as mãos.

        Ao longo da história a palavra música se referiu a diversos fenômenos diferentes. Quando se pega os textos de Platão, você entende que a palavra música não diz respeito à arte dos sons, mas sim a algo que hoje seria semelhante ao termo "educação e cívica". Apesar disso, é muito comum ouvirmos dizer que Platão exaltava o ensino de música, como se música fosse a arte dos sons. Isso não é exatamente verdade. A arte dos sons fazia parte da educação platônica, mas pertencia a um corpo maior de disciplinas e assuntos que recebiam o nome de Música, afinal as musas possuíam diversas habilidades diferentes, como aritmética, geometria e filosofia.

        Já na Idade Média, nos deparamos com um novo conceito de música. Quando se lê os textos sobre música de Boécio e outros pensadores, imediatamente notamos que a palavra "Música" remete a uma espécie de ciência especulativa específica que trataria da organização do mundo, dos quais o assunto "organização dos sons" fazia parte, mas não era o assunto central. Ali podemos notar palavras como harmonia no seu sentido mais amplo e não no sentido musical que hoje atribuímos. De todo modo, já é uma postura diferente diante da arte dos sons em comparação aos antigos pensadores gregos.

        Mas foi no decorrer da Idade Média que a arte dos sons foi ganhando cada vez mais essa preponderância. Ali surgiram os primeiros tratados de técnicas de organização sonora que mais tarde ficaram conhecidas com o nome genérico de harmonia ou contraponto. E foi justamente na segunda metade da Idade Média que tivemos as primeiras composições musicais por assim dizer. Não é que não compusessem música antes. Mas agora teríamos um especialista técnico capaz de combinar os sons numa linguagem absolutamente específica e de certa forma livre de influências diretas. Antes era mais comum a alteração e modificação de "músicas" já pré-estabelecidas como numa forma de tradição viva, acrescentando-lhe, modificando ou suprimindo-lhe elementos.

        Ao chegar no Renascimento Musical, essas atividades e técnicas já estavam bem estabelecidas, de maneira que os músicos da Renascença levaram a arte dos sons ao seu mais esplêndido potencial, fruto do desenvolvimento oriundo dos séculos anteriores. Apesar disso, a música ainda recebia um forte apelo vocal, já que as vozes humanas ainda eram os instrumentos mais flexíveis, com maior capacidade técnica e também expressiva. Mas foi ali que começou a proliferação da música enquanto arte sonora pura, sem apelo das palavras e da poesia. Não que não houvesse isso antes, apenas os renascentistas deram a esse segmento um contorno e valor antes nunca vistos. As obras de Downland, por exemplo, mostram a engenhosidade dessa música.

        Cada vez mais a música se firmava como a arte pura dos sons e não só favoreceu, como foi favorecida pelos diversos avanços da lutheria e técnicas de construção de instrumentos. Quando o piano foi inventado, por exemplo, ainda não era possível que um instrumento de tecla pudesse soar forte ou fraco de acordo com o toque dos dedos do instrumentista. Assim o piano veio para resolver essa dificuldade. E quanta música maravilhosa foi criada para esse instrumento desde então? Os concertos de Mozart, as Sonatas de Beethoven, as Baladas de Chopin só para citar algumas obras...

        É verdade que o leigo na maioria das vezes possui um conceito de música que está mais ligado à poesia e ao cantar, na maioria das vezes. Talvez porque esse gênero esteja mais adequado ao âmbito de suas práticas e fazeres musicais. E é a partir daí que geralmente surge o conceito de música instrumental. Como se a "música mesmo" fosse aquela feita com palavras e poesias e a música instrumental fosse um tipo a parte de música. 

        O primeiro ponto que se pode observar é que nos corredores leigos não é costume ouvir música a Capella, como diversos gêneros corais. A música "cantada" que o leigo ouve é acompanhada por diversos instrumentos. Embora esse fato pareça corriqueiro à maioria das pessoas, basta um ouvido um pouco mais atento para notar que retirando-se completamente os instrumentos, modifica-se significativamente o caráter da música em questão. Já imaginou uma Bossa Nova sem seu instrumento acompanhador? Não que isso seja impossível, muito pelo contrário. Mas a presença do instrumento solidifica o gênero musical como um todo.

        Em segundo lugar, podemos admitir a música como uma linguagem que se sustenta através de símbolos representados por combinações sonoras. Já não é mais aquela arte múltipla dos gregos que concatenava ao mesmo tempo encenação, oratória, poesia, canto e dramaticidade. Não! Agora a música é uma arte independe que se assenta sob os princípios do som e das relações entre eles. Isso é muito bem observado por Hegel, por exemplo, que percebe na música um caráter de abstração tal que não é possível relacionar a nada de concreto propriamente. Nesse sentido, não é a expressão  "Chega de saudade" isolada que nos causa a emoção na famosa canção de Vinícius de Moraes. É muito mais o jogo de sons que combinados vão produzir um sentido musical que nos afeta enquanto ouvintes e enquanto intérpretes. Bastaria modificar as notas, ritmos e outros aspectos musicais para perceber que a expressão "Chega de Saudade" ganharia um sentido absolutamente diverso.

        Se a Música é uma linguagem e está absolutamente ligada ao jogo de combinações sonoras, temos que outros aspectos deverão nortear o seu juízo ou o que chamaríamos de crítica musical. Não é papel aqui dizer que um tipo de música seja melhor que outro não é isso. Mas se vamos submeter a música a algum tipo de senso crítico, quer seja para encontrar seus valores e significados, devemos nos ater ao funcionamento da música enquanto arte dos sons. E enquanto arte dos sons, a música é regida pela relação dos sons e não por aspectos externos a isso. Querer submeter a Música a um tipo de juízo extra-musical é absolutamente amarrar-lhe as mãos, amordaçar-lhe a boca e pedir que lute e argumente. 

Que haja som! Que o som fale!

        

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