sábado, 27 de abril de 2019

A Arte do Futuro

A música sempre foi valorizada por pensadores e intelectuais. Além disso, cada vez mais se estimula a aprendizagem e apreciação de música por diversos segmentos sociais. Países notadamente bem-desenvolvidos econômica e socialmente cultivam a música de forma significativa. Bach, Mozart, Beethoven e Brahms ocupam o hall que na Antiguidade Clássica ocupavam Homero e Sófocles. E até Wagner desenvolveu o conceito de "Arte Total" que se desenvolvia em torno da música operística.
Por estes e outros argumentos a música acabou se tornando a arte do século XX, embora com diferentíssimas características.
O que teria levado a música a esse status?
Os argumentos podem girar em torno da sociologia, neurologia, filosofia, história, entre outras ciências. Aqui pretendo dar sentido ao argumento através de uma visão ideológica.

1- O séc XIX
    Uma das etapas no desenvolvimento do pensamento ocidental foi o Iluminismo. A doutrina Iluminista defendia, dentre outras teses, o uso exclusivo da Razão para se chegar ao conhecimento das coisas. Um dos seus maiores representantes foi Rousseau, que influenciou profundamente os séculos posteriores, inclusive o século XIX. Rosseau além de pensador era também músico, tendo composto uma ópera cuja melodia é conhecida mundialmente.
     No Iluminismo é que foi cultivado o saber enciclopédico. Diversas enciclopédias foram editadas para dar grande vazão ao objetivo de "esclarecer" a humanidade. Aliás, achavam os iluministas que um conhecimento mais diversificado e universal é que levaria o homem à realização de suas finalidades mais íntimas.
    Esse trajeto universalista ia começar a se propagar por diversas ciências e até pela arte. O que mostra, na verdade, uma característica do pensamento humano daquela época. Cada vez mais a sociedade mostrou um grande empenho em edificar a própria grandiosidade e a arte não poderia se afastar disso.
    A medida que o século XIX se transcorria, grandes poetas, artistas e pensadores realizavam tarefas cada vez mais engenhosas. Uma delas foi a tarefa de Wagner com sua "Arte Total". A "Arte Total", para Wagner, seria a concepção de uma obra que reunisse diversas disciplinas simultaneamente. A poesia, a filosofia, a história, a dramaturgia e música estariam todas reunidas nesse propósito colossal.
    Paralelamente a isso, diversos outros músicos desenvolviam a técnica musical, elevando também a música e feitos inimagináveis. A harmonia desenvolveu-se em processos muito mais complexos, as orquestras cresceram de tamanho significativamente, os instrumentistas e regentes desenvolveram suas habilidades a níveis sobre-humanos. Aliás, foi no século XIX que foi criado uma instituição bastante conhecida hoje, o Conservatório.
    O Conservatório de Música foi uma instituição concebida inicialmente para treinar músicos virtuoses. Muitos métodos para instrumentos foram desenvolvidos nessa época com esse objetivo de levar o instrumentista ao virtuosismo. Carcassi no violão, foi um desses exemplos. Estruturou um método completo progressivo no violão que é utilizado até hoje por escolas de música e conservatórios.
    Claro que o século XIX ficou conhecido pelo seu Romantismo e Idealismo, ideologias que andam juntas. O ideal romântico de expressividade máxima, levou a música a um detalhamento bastante significativo e o Idealismo acabou por levar o homem musical ao desenvolvimento de habilidades intelectuais amplas no domínio da música.

2- A lógica Proposicional
    Também o século XIX foi o palco de outros pensadores e cientistas. Um deles foi George Boole, pai da lógica proposicional. Como o empirismo inglês foi altamente responsável pelo desenvolvimento de diversas ciências empíricas, a matemática acabou por ser desenvolvida como ferramenta de raciocínio nas ciências e diversas disciplinas.
    O mérito de Boole é que ter criado um sistema de lógica que fosse possível raciocinar em torno de proposições matemáticas. Isso nos dá a intuição de que na verdade, o pensamento proposicional era uma vertente do pensamento do século XIX. A famosa frase de Marx "Se a classe proletária tudo produz, a ela tudo pertence" é de cunho proposicional. A prova disso na música chama-se L. Beethoven.
    Beethoven, nascido e criado em Bonn, Alemanha tem seu nome gravado nas salas de concerto de todo o mundo através de sua música e de seu ideal. Aclamado pela crítica pela sua concisão e síntese, sua obra está bastante calcada no desenvolvimento de uma "proposição" inicial simples, de onde ele consegue tirar as mais diversas consequências. O exemplo clássico é a sua famosa Sinfonia V, cujos 4 compassos iniciais com apenas 4 notas é a semente orgânica de todo o primeiro movimento.

3- Psicomotricidade
    Diversas ciências autônomas e disciplinas novas surgiram durante o século XIX. Uma delas é sociologia. Embora já houvessem pensamentos e sistemas sociológicos desde a antiguidade, foi no século XIX se não me engano que se desenvolveu a Sociologia como ciência autônoma. Também outras ciências se beneficiaram desse grande desenvolvimento.
    A Psicomotricidade é um conceito que se originou em final do século XIX, mas que se desenvolveu melhor no século XX. A Psicomotricidade, como outras ciências é um desdobramento do pensamento do século XIX. Os pensadores desse período, como Hegel, Marx etc se concentravam bastante no aspecto do movimento e na transitoriedade das coisas. Tal concentração só podia levar ao enaltecimento do movimento humano em seus diversos aspectos, inclusive o físico.
    Calcada em diversas ciências como Psicologia, Neurologia e Educação Física, a Psicomotricidade tenta compreender e facilitar o desenvolvimento motor do homem. Inclusive, há autores que defendem que antes da aquisição de habilidades intelectuais, a criança desenvolve habilidades psicomotores. Por isso começou-se um grande movimento em torno da psicomotricidade,  que facilitaria o desenvolvimento de diversas habilidades psíquicos em crianças,  principalmente com os trabalhos iniciais de Duprè e posteriormente com Le Boulch.
    Como músico, devo admitir que o desenvolvimento motor nos instrumentistas se desenvolveu bastante nos séculos XIX e XX. Como professor de música, noto que as habilidades motoras das crianças tem decaído nos últimos 10 anos, reflexo talvez de falta de estímulo e prática.
   Curiosamente foi Jacques Dalcroze, professor de música que desenvolveu uma metodologia de ensino que associava motricidade e som. Assim, por meios de movimentos e posições corporais, o estudante de música teria um meio de compreender melhor a relação dos sons, aumentar sua percepção auditiva e desenvolvimento de habilidades teóricas e criativas.
    De todo modo, uns mais, outros menos, as metodologias de ensino da música no século XX sempre se preocuparam com a motricidade básica desde os primeiros contatos.

4- Sociologia
    É também no século XIX que se desenvolve o conceito de povo e também de nação. Não à toa, os pensadores alemães estavam sempre mencionando a palavra "povo". De povo vem a palavra popular e de nação vem a palavra nacionalismo.
     A cultura de um povo marca profundamente as relações entre os indivíduos e os grupos e a música é uma nota característica da cultura de um povo, de forma que a identidade social é profundamente marcada pela música e pela arte em geral.
     Na música, o nacionalismo ficou marcado pelo resgate de músicas populares e de profunda influência da cultura popular das nações. Quando Brahms publicou o seu "Um Réquiem Alemão", estava aí um exemplo de sua influência nacionalista e popular. Aliás, publicação que em nada agradou seu concorrente R. Wagner que questiona a autenticidade do germanismo incluso na obra. De toda forma, Wagner ou Brahms, Tchaikovsky ou Dvoràk etc estavam todos imbuídos, uns mais, outros menos, de um pensamento nacionalista.
     Em terras tupiniquins, o nacionalismo durou e ainda dura desde Villa-lobos até os compositores contemporâneos que fazem forte alusão à vasta música popular brasileira. Diga-se de passagem que até bem pouco tempo, aquele compositor que não compusesse música "brasileira" sofria sérias dificuldades para ter suas obras executadas e aceitas no meio acadêmico musical.

5- Filosofia
     A filosofia é uma disciplina genuinamente intelectual. Basicamente constitui-se no desenvolvimento de uma ideia de teor altamente abstrato. Claro que a música vai estar relacionada com a filosofia de algum modo. Primeiro, como objeto de valor estético, depois como resultado de uma reflexão moral.
     Do ponto de vista estético, diversas correntes se originaram em meados do séc. XIX, embora todas fossem mais ou menos homogêneas. Mas com a explosão musical de estilos e formas de música no século XX, diversas correntes estéticas também se desenvolveram para dar explicação à beleza da nova arte. Um dos estetas mais mencionados é o pensador T. Adorno. Adorno, compositor, que foi aluno de Berg, em seu pensamento estético vai sempre de encontro ao pensamento industrial e à cultura de massa, segundo ele, altamente nocivas para a sociedade.
     Por outro lado, surgiram diversos estetas no século XX que se opuseram fortemente ao rumo que a arte tomou no século XX. Para muitos deles, as raízes desse rumo estariam no século XIX. De todo modo, não se pode negar as profundas modificações que a arte realizou no homem em todos os séculos. Não se pode negar, inclusive, a relação profunda da arte com o comportamento da sociedade como um todo e de suas ideologias. Ademais, diga-se sem compromisso que Hitler dizia encontrar em Wagner uma parte de sua concepção do Nacional Socialismo.
     Do meu ponto de vista, a música é filosofia prática. Isso, pois sua estrutura está fortemente calcada em ideias abstratas e no desenvolvimento delas. Afinal, o que é uma melodia senão uma concepção altamente abstrata? O que é a música senão a concatenação de melodias mediante concisão e coerência? Independentemente de se a música pode expressar sentimentos, emoções e/ou pensamentos, haverá sempre um requisito mínimo de coerência e consistência para que esses sentimentos, emoções ou pensamentos sejam expressos. O que o compositor se depara o tempo inteiro é em não repetir coisas já ditas, não se contradizer e às vezes em não falar demasiadamente. Se isso não é filosofia, não sei o que é.
 
6- Matemática
   Desde Pitágoras o homem já se deparava com as relações matemáticas na música. É famosíssimo a lenda em que Pitágoras teria encontrado a proporção dos sons de uma escala mediante a audição de marteladas que um ferreiro dava em bigornas de diferentes tamanhos.
    A proporção matemática foi bem desenvolvida entre os gregos como meio de dar equilíbrio às formas artísticas. Assim a proporção das colunas na arquitetura, a proporção das partes na escultura, todos eles irão oferecer o homem um meio de equilibrar as partes de uma obra.
    Apesar de a música ter ficado na proporção durante muito tempo, foi no século XX que ela utilizou grandes aportes matemáticos. Desde a teoria de Conjuntos de A. Forte, até as matrizes tricordais de Babbit, a influência matemática na música se tornou cada vez mais presente.
    Particularmente, posso citar o núcleo MusMat da UFRJ que faz pesquisa em torno das relações entre matemática e música. Inclusive, um dos membros, o compositor brasileiro Pauxy Gentil-Nunes, em sua tese de doutorado aborda uma teoria amplamente aceita na matemática, teoria das partições, para então analisar e sintetizar obras musicais. Claro que há outros trabalhos não menos importantes.
   Na minha experiência como músico , percebo que os desafios musicais que enfrentei são muito semelhantes aos desafios matemáticos que encontrei. Buscar soluções, não-contradição e criatividade são algumas das dificuldades que todo compositor enfrenta. Também é possível encontrar relações quantitativas nas obras dos compositores.
    Como professor, passo boa parte do meu tempo corrigindo durações e valores de notas no tempo, que nada mais é do que uma contagem e medição dos sons na música. Mesmo no solfejo, o que o músico tenta  realizar é um cálculo exato das notas, a menos que tenha um ouvido absoluto. Por exemplo, a frequência em hertz do intervalo de uma oitava expressa a proporção de dobro entre as duas notas, de forma que um músico experiente pode calcular rapidamente o dobro de qualquer frequência e emiti-la imediatamente.

7- Educação
    Mas é na educação que a música traz os mais severos impactos. É sabido que os países mais desenvolvidos investem pesado em educação e que a música faz parte integrante desses currículos. Também ficou muito famoso o "efeito Mozart", aquele fenômeno que consiste em aumentar a capacidade intelectual de bebês expondo-os à música de Mozart. Embora um pouco fantasioso, o fenômeno mostra a investigação dos efeitos da música em torno do desenvolvimento intelectual.
     Se tomarmos o paradigma da Psicomotricidade como verdadeiro, de que a motricidade é o gérmen do desenvolvimento psíquico, a música instrumental tem algo a contribuir que poucas outras atividades tem: o desenvolvimento de coordenação motora fina.
    De forma geral, os estudiosos da psicomotricidade entendem que o desenvolvimento da motricidade se dá de grandes arcos de movimento para arcos menores e mais delicados. Assim, levantar braços e pernas é uma atividade mais elementar que abrir e fechar as mãos. Contudo, a maior parte das atividades diárias de um indivíduo normal está associada à grandes arcos: sentar, levantar, comer, andar. Aqueles que praticam música desenvolvem uma habilidade peculiar que é o controle motor fino, que sem mais delongas irá auxiliar no desenvolvimento psicomotor como um todo e consequentemente intelectual, se é que o fundamento do intelecto está no movimento.
    Por outro lado, a música cantada pode ser veículo de ideias mais concretas e tem sido muito utilizada para ensinar números, alfabeto e vocabulário à crianças de todo o mundo e com bastante sucesso. Atualmente o uso mais sistemático dessa atividade tem produzido efeitos interessantes na aprendizagem de crianças e adultos.
   Sobremaneira, não acho que os benefícios intelectuais do aprendizado de música devam ser o único e principal motivo para se aprender e veicular música. A verdade é que a música é uma manifestação cultural e intelectual. Se admitirmos, com Aristóteles, o homem como um animal intelectual, seria totalmente desumano retirar-lhe a intelectualidade nas suas diversas formas da qual a música é uma delas. Assim, negar o aprendizado de música é em parte negar a faculdade intelectual do indivíduo, é negar a sua humanidade.

8- Subjetivismo
   Também foi no século XIX que o "sujeito" ganhou mais espaço nas discussões intelectuais. Isso fica claro, por exemplo, nos trabalhos de Hegel e Kant. Inclusive, Hegel tece algumas considerações ao conceito de  dualidade entre sujeito e objeto proposta por Kant. De todo modo, a presença proeminente do sujeito nas discussões intelectuais deu cabo ao desenvolvimento do subjetivismo, isto é, uma corrente de pensamento que descreve o sujeito como origem das coisas, inclusive do conhecimento.
   Na música, o subjetivismo encontra forte terreno no Romantismo, onde muitas vezes o autor romântico busca a expressão de seus "sujeito" na obra. No século XX fica ainda mais patente a presença do sujeito nas diversas correntes ideológicas, inclusive na psicanálise, existencialismo etc.
   Quer seja na Alemanha, quer seja no Chile, o melhor terreno para se desenvolver a subjetividade é a música. Isso se dá pelo fato de o músico encontrar uma liberdade suficiente para expressar o que quer que seja, podendo inclusive até criar a própria linguagem, que mesmo desconhecida estruturalmente pelos ouvintes, consegue atingir e impactar tais receptores da mensagem sonora.
   Curiosamente, muitos poetas subjetivistas do século XX afirmam sua insatisfação com a poesia linguística, uma vez que eles estariam presos às palavras para se expressar. Alguns até tentaram formar palavras novas ou compor rimas silábicas, mas a objetividade da língua falada impera que o ouvinte buscasse significado concreto naqueles sons.
    Na música, ocorria o inverso, muitos músicos se queixavam de não haver palavras suficientes para descrever os estados da música e isso os deixavam sem palavras. Aliás, é isso mesmo o que é a música, uma poesia sem palavras. Qualquer palavra é só uma analogia para descrevê-la.
   Todo esse ambiente favoreceu a presença do subjetivismo na música e a presença da música no subjetivismo, fato que sem dúvida, levou a música ao caminho em que se encontra atualmente, incluindo suas características altamente técnicas.

9- Opinião
    O que para mim é uma tentativa geral do Iluminismo e também do século XIX é conglomeração de diversos saberes. A Sinfonia 8 de Mahler é um exemplo disso: para congregar todos os seus elementos e realizá-los foram necessários cerca de mil músicos na época, fato que exigia uma concatenação de saberes.
    O que a música tem me mostrado nesses anos todos é justamente uma conglomeração de saberes. Ao mesmo tempo que a música é uma atividade intelectual, é também uma atividade física quando realizada pelos instrumentos e cantores. A questão física que poderia estar associada à psicomotricidade é objeto de estudo até hoje. Métodos são criados para desenvolver as habilidades motoras dos estudantes de música, indivíduos gastam uma soma considerável de horas desenvolvendo suas habilidades instrumentais, pacientes recuperam sua neuroplasticidade através do uso da música e a lista não termina.
   As suas características intelectuais são oriundas da soma dos diversos saberes simultaneamente: matemática, lógica, filosofia, história e física. Os centros especializados de música oferecem cursos em todas essas vertentes e as faculdades de música possuem em sua grade diversas disciplinas associadas à essas questões, fora as pesquisas relacionadas a tais assuntos. Tudo isso resulta num excelente desenvolvimento intelectual do indivíduo e da sociedade.
  Emblemático é o fato de que justamente no século XIX começou um movimento futurista encabeçado por pensadores e escritores como Júlio Verne. Esse movimento de especulação do futuro maravilhoso tinha como fundamento o otimismo intelectual do Iluminismo presente no século anterior que acreditou ter libertado o homem de amarras que teriam retardado a sua evolução. Logo enorme expectativa começou a girar em torno do futuro.
  Se o saber enciclopédico ou em linhas gerais o conhecimento universalista seria o que libertaria o homem intelectualmente, que atividade poderia ser justamente o seu maior representante? Justamente por conglomerar os diversos saberes, por ser ao mesmo tempo mental e corporal, ao mesmo tempo arte e ciência e ser ao mesmo tempo subjetiva e objetiva à música cabe o status de arte do futuro, ao menos em termos iluministas.
Finalizo com uma frase do compositor francês Debussy acerca do século XX: "O século dos aviões e arranha-céus merece a sua própria música."