domingo, 26 de junho de 2022

A música do século XX

    O século XX abre as portas para uma sociedade com novas características. O século das duas guerras mundiais é também caracterizado por diversos avanços tecnológicos e artísticos. Nesse âmbito, surgem compositores como Stravinsky e Schönberg, que lançaram as bases de novas sonoridades.

    Etimologicamente, a palavra “moderno” vem de modo hodierno, isto é, ao modo de hoje. Assim os antropólogos e musicólogos denominaram esse período da história, majoritariamente decorrido na primeira metade do século XX.

    De uma forma geral é bastante difícil unificar a sonoridade do século XX. Enquanto um Bartok estava debruçado sobre a música nacional e modal, um Schönberg se preocupava com mecanismos de dissolução da tonalidade. Isso levou o século XX a uma riqueza inventiva na arte musical antes nunca vista.

    Dodecafonismo foi como ficou conhecida a técnica propulsionada por Schönberg. Consistia basicamente em desenvolver a música a partir da criação de uma série de 12 notas em que qualquer construção tipicamente tonal, como arpejos e escalas, fosse abolida. Tanto a harmonia, quanto a melodia são oriundas dessa série, que funciona como princípio gerador da obra. Nesse contexto é que são aplicadas diversas operações de manipulação da série, como inversão, retrogradação etc.

    O contraponto dodecafônico da primeira metade do século XX é, basicamente, linear, lembrando, nesse sentido, o contraponto renascentista. O Contraponto dodecafônico segue, em primeiro lugar, a ordem intervalar da série, não deixando, no entanto, de considerar a qualidade dos intervalos harmônicos, resultante da sobreposição das linhas melódicas. Readquirem importância os meios tradicionais de estruturação contrapontística, tais como cânone, inversão, retrogradação, aumentação e diminuição. Deixa de existir, na prática, o dualismo tradicional consonância-dissonância, que cede lugar a um critério mais tímbrico da qualidade dos intervalos (emancipação da dissonância). KOELLREUTER (1996) p. 17

    Por outro lado, em Bartok chama a atenção o uso de dissonâncias livres, como observa SEARLE(1954). O seu famoso Mikrokosmos está cheio disso desde o começo. Por exemplo, a pequena peça “Reflexão” inicia-se com uma 7ª não preparada. Ao considerar uma peça a duas vozes, se trata de algo bastante não convencional. Da mesma maneira no “Movimento Contrário”, aonde uma 16ª nas notas extremas se mostra bastante áspera, embora alcançada por movimento contrário por graus conjuntos. Além disso, tal intervalo é precedido pelo intervalo de 14ª, que por si já apresenta uma certa aspereza. A tudo isso soma-se o fato de a melodia superior figurar uma espécie de dó jônico enquanto a inferior uma espécie de dó lídio. Essas características conferem um sabor à pequena, que embora pequena, configura-se claramente como sonoridade do século XX.

    Um outro importante indivíduo responsável pela construção da sonoridade do século XX foi Stravinsky. “Considero a música essencialmente incapaz de expressar o que quer que seja (...)” Com essa frase, Stravinsky se coloca em uma posição estética anti-romântica, que colocava a arte como expressão de sentimentos, ideias etc. Esse posicionamento ficou conhecido como neo-classicismo. Apesar disso, ao longo de sua carreira, Stravinsky bebeu em fontes diversas e sua obra é de tal forma diversificada que defini-la é tarefa delicada.

    A história da música nos revela como a harmonia se desenvolveu ao longo dos séculos e mostra também como o espírito criador do ser humano é bastante fecundo, apesar de atrelado à sociedade em que momentaneamente vive. Nesse sentido é imprescindível observar que o estado final da música não está nunca alcançado. É sempre um eterno desenvolvimento.

domingo, 12 de junho de 2022

Harmonia no Romantismo: pitadas de estranheza no classicismo

    A palavra “Romântico”, que vem de “romano” foi usada inicialmente para categorizar a literatura fantástica. Como no caso do Rei Arthur ou Ivanhoé, era comum que o romance descrevesse uma aventura ocorrida durante a Idade Média. Nesse sentido, o romance seria algo que se afastaria do mundo real com uma imaginação fecunda. Por outro lado, para alguns, o romantismo adiciona ao conceito de belo algo de estranheza. Desse modo, a arte romântica acaba por diferenciar-se da arte clássica devido a um maior grau de afastamento do concreto e doses maiores de "estranheza".

    Se tomarmos a história da música como um fio condutor em que a harmonia evoluciona de acordo com o ambiente estético e estilístico da época, essa nova “harmonia romântica” precisaria adicionar pitadas de "estranheza" e um certo grau de afastamento do mundo concreto. Assim é que surgem os acordes e os modos alterados, as imprevisíveis cadências de acordes e principalmente o uso mais amplo do cromatismo.

    O cromatismo já vinha sendo utilizado desde Bach e até mesmo antes por compositores renascentistas italianos, mas no Romantismo, especialmente em Wagner ele se torna parte estrutural da harmonia, um artifício que no fundo tentava atender aos princípios tipicamente românticos de expressão dos sentimentos por meio de uma tensão constante. Claro que o Romantismo enquanto período histórico é bastante plural em suas manifestações. É por isso que ao mesmo tempo que simultaneamente encontramos um Brahms –fiel seguidor de Beethoven- encontramos também um Wagner levando o ideal romântico às últimas consequências.

    Especificamente, a  harmonia do Romantismo acrescenta novas possibilidades harmônicas. Em contraste com uma harmonia clássica mais clara e simplificada, a harmonia romântica usufrui de uma série de acordes que até seriam estranhos, por assim dizer, à harmonia clássica. Para Brisolla (2008) “Com o desenvolvimento do romantismo, a tonalidade sofre um novo abalo com a revivescência de antigas escalas modais e dos acordes decorrentes do conceito harmônico dessas escalas e, ainda, com a alteração dos acordes tradicionais.”

    Já para Koellreuter (1986), “o subjetivismo romântico (...) enriqueceu consideravelmente a harmonia dos compositores clássicos, pela cromatização (...) e pelo uso amiudadamente repetido da modulação, libertando cada vez mais o acorde de sua condição funcional e ampliando, desse modo, o conceito de tonalidade.” O autor entende que é essa dissolução progressiva do tonalismo vai dar origem ao impressionismo e mais tardiamente no dodecafonismo. É justamente essa dilatação tonal no campo da harmonia, essa “estranheza” é que vai originar a 4ֻª lei tonal.

A 4ª lei tonal e o Romantismo

1- Alteração de modo
Um acorde pode ser alterado de maior para menor e vice-versa, sem prejuízo na manutenção da tonalidade. Nesse caso não se considera alteração do acorde, mas sim alteração do modo.

2-Acordes oriundos do modo eólio e dórico.
O modo eólio e dórico oferecem novas possibilidades harmônicas, como por exemplo um dominante menor e seus relativos. É possível realizar alterações cromáticas ascendentes e descentes em quaisquer alturas em um acorde.

3- Alteração no acorde de Tônica
Como a alteração na fundamental ou quinta do acorde produz uma mudança de função, só é possível alterar propriamente a terça do acorde.

4- Alteração do acorde de Subdominante
Da mesma forma que no acorde da Tônica, a única alteração possível ocorre na terça, isto é, alteração de modo.

5- Alteração do acorde de Dominante
Já o acorde da dominante se mostra o mais flexível, admitindo inúmeras alterações. Apesar disso, a 5ª é geralmente o intervalo mais alterado nesses acordes.

    O que o Romantismo traz em termos de harmonia são novas possibilidades. Apesar disso, tais novas possibilidades não abandonam absolutamente o tonalismo, apenas o expandem de forma significativa, levando seus princípios às últimas consequências. O educador atento, o músico atento vão notar que a percepção desse fato enriquece a experiência musical, trazendo novos universos sonoros à realidade individual dos alunos e do público.


domingo, 5 de junho de 2022

Existe educação musical?

        Há três coisas em que todos são especialistas. Uma delas é o futebol. Mesmo aqueles que nunca puseram o pé na bola são capazes de redigir verdadeiros tratados futebolísticos que abordam desde estratégias de jogo até o regulamento do esporte. Com a política não é muito diferente. Todos nós temos arraigadas opiniões nos mais diversos aspectos dessa nobilíssima arte. Contudo o buraco é ainda mais fundo quando se trata de educação.
        Educação é uma palavra que suscita a reflexão de quase todos os filósofos da história. Não seria por acaso que os indivíduos tenham suas próprias opiniões sobre o assunto. E das mais diversas. Claro que não há nenhum problema nisso. Afinal, o ser humano é um ser pensante. Apesar disso, ninguém nunca se pergunta sobre o que é a educação de fato. Ao menos nunca ouvi tal questionamento. Mas o que é educação?
        Há diversos sentidos para a palavra educação. Por exemplo, a experiência. Os mais velhos por terem mais experiência estão mais preparados para certas situações do que os mais novos. Será que não poderíamos dizer que estão mais educados? Há pessoas que viajaram mundo afora e conhecem diferentes culturas. Não são essas pessoas também muito educadas? E os cientistas que, como Fausto, passaram sua vida dedicados aos estudos e possuem conhecimento aprofundado de certos assuntos?
        Paralelamente, sabe-se que a escola é uma tentativa de cultivar a educação sistematicamente. Ao contrário das viagens, das leituras e das experiências de vida, a escola busca atingir um objetivo muito específico e com otimização de recursos. O que pode levar décadas na vida pessoal de um indivíduo, na escola tem que acontecer dentro de um certo tempo e de certa maneira. Assim, os conteúdos são organizados, as aulas são cronometradas e o rendimento dos alunos é medido. Ao contrário da vida, o artificialismo do sistema educacional não oferece espaço à espontaneidade. É sua característica.
        Quando indagado se o brasileiro possui educação financeira - um conceito da moda- , o famoso bilionário brasileiro Luiz Barsi exclamou: "se você vive abaixo do que ganha, está perfeitamente educado financeiramente. O que falta é cultura de finanças." 
        Ao me deparar com essa frase de um pragmatismo absoluto, imediatamente percebi que a educação não é só a obtenção de um conhecimento. Claro, podemos estudar profundamente um assunto e isso vai ser, sim, educação num certo sentido. Mas existem premissas para que isso ocorra. Por exemplo, se um aluno simplesmente não pratica seu instrumento, não vai se desenvolver musicalmente. Além disso, mesmo que um aluno atinja grande conhecimento do assunto, ainda pode se tornar um déspota, como aconteceu inúmeras vezes no século XX: homens indubitavelmente cultos, mas também perversos. Assim a tarefa do professor não seria somente "dizer" a matéria, mas também motivar o aluno a um tipo de comportamento que favorecesse seu desenvolvimento, além de outras coisas mais.
        Pode-se considerar, inclusive, que um aluno que desenvolva a habilidade de buscar seus objetivos consiga fazer isso em qualquer dimensão da sua vida. Dessa forma, a educação não se trata simplesmente de aprender -e ensinar - matemática ou português. Se trata de desenvolver as capacidades humanas em diversas dimensões para que o ser humano seja aquilo que está projetado para ser: humano. E o que tem a música a ver com isso? 
       A verdade é que fazemos música, pois somos seres humanos. A dimensão da espontaneidade, da intuição, do subjetivo são também dimensões humanas que podem ser desenvolvidas na educação. Infelizmente, a música e a arte são colocadas meramente como soluções para problemas de outra ordem. Se o aluno tem dificuldade em matemática, certamente a música o ajudará a desenvolver o raciocínio. Se o aluno tem TDAH, a música vai desenvolver sua concentração e memória. E por aí vai...
        Essas ideias, embora verdadeiras, escondem o papel coadjuvante que querem entregar às artes e à música. É por isso que quando uma criança tem dificuldade em música, ninguém diz: "é bom estudar matemática para aumentar sua capacidade musical." A primeira solução que se encontra, geralmente é imaginar que a criança não tem jeito ou dom para aquilo. A segunda é sugerir o abandono da atividade. Atitude absolutamente impensável em outras disciplinas escolares.
        Ademais, a aula de música pode ser até um estímulo negativo. Por exemplo, se o professor começar a incutir a inveja nos alunos, apontando uns como melhores que outros, isso tenderá a estimular a concorrência e desunião dos alunos que no longo prazo se torna absolutamente prejudicial. Ou mesmo nos casos em que a aula de música desenvolve mal estar em sala de aula, da mesma forma que em outras disciplinas. Aliás, tudo depende muito da forma como se ensina.
        Sou da tese de que qualquer professor de qualquer disciplina pode "tratar" um desvio como o TDAH ou TOD. Ou melhor: lidar. Não que ele seja médico ou psicólogo. Nada isso. Mas um professor atento vai saber utilizar recursos que desenvolvam concentração, atenção, raciocínio e memória, independentemente da disciplina que ministra. A música por si só não pode fazer muita coisa, principalmente se a instituição educacional não adota uma metodologia didática. Além disso, na maioria das vezes o aluno tem contatos semanais de curta duração com a música, o que não poderia ser considerado um tratamento.
       Nesse sentido, não há educação musical. O que há é educação humana. A presença da arte no corpo da cultura e da educação está ligada muito mais ao desenvolvimento de habilidades e características propriamente humanas do que à apagamento de incêndios oriundos da uma educação inadequada e deficiente. Resta saber se os seres humanos estão preparados para isso.
        Que haja música!