domingo, 5 de junho de 2022

Existe educação musical?

        Há três coisas em que todos são especialistas. Uma delas é o futebol. Mesmo aqueles que nunca puseram o pé na bola são capazes de redigir verdadeiros tratados futebolísticos que abordam desde estratégias de jogo até o regulamento do esporte. Com a política não é muito diferente. Todos nós temos arraigadas opiniões nos mais diversos aspectos dessa nobilíssima arte. Contudo o buraco é ainda mais fundo quando se trata de educação.
        Educação é uma palavra que suscita a reflexão de quase todos os filósofos da história. Não seria por acaso que os indivíduos tenham suas próprias opiniões sobre o assunto. E das mais diversas. Claro que não há nenhum problema nisso. Afinal, o ser humano é um ser pensante. Apesar disso, ninguém nunca se pergunta sobre o que é a educação de fato. Ao menos nunca ouvi tal questionamento. Mas o que é educação?
        Há diversos sentidos para a palavra educação. Por exemplo, a experiência. Os mais velhos por terem mais experiência estão mais preparados para certas situações do que os mais novos. Será que não poderíamos dizer que estão mais educados? Há pessoas que viajaram mundo afora e conhecem diferentes culturas. Não são essas pessoas também muito educadas? E os cientistas que, como Fausto, passaram sua vida dedicados aos estudos e possuem conhecimento aprofundado de certos assuntos?
        Paralelamente, sabe-se que a escola é uma tentativa de cultivar a educação sistematicamente. Ao contrário das viagens, das leituras e das experiências de vida, a escola busca atingir um objetivo muito específico e com otimização de recursos. O que pode levar décadas na vida pessoal de um indivíduo, na escola tem que acontecer dentro de um certo tempo e de certa maneira. Assim, os conteúdos são organizados, as aulas são cronometradas e o rendimento dos alunos é medido. Ao contrário da vida, o artificialismo do sistema educacional não oferece espaço à espontaneidade. É sua característica.
        Quando indagado se o brasileiro possui educação financeira - um conceito da moda- , o famoso bilionário brasileiro Luiz Barsi exclamou: "se você vive abaixo do que ganha, está perfeitamente educado financeiramente. O que falta é cultura de finanças." 
        Ao me deparar com essa frase de um pragmatismo absoluto, imediatamente percebi que a educação não é só a obtenção de um conhecimento. Claro, podemos estudar profundamente um assunto e isso vai ser, sim, educação num certo sentido. Mas existem premissas para que isso ocorra. Por exemplo, se um aluno simplesmente não pratica seu instrumento, não vai se desenvolver musicalmente. Além disso, mesmo que um aluno atinja grande conhecimento do assunto, ainda pode se tornar um déspota, como aconteceu inúmeras vezes no século XX: homens indubitavelmente cultos, mas também perversos. Assim a tarefa do professor não seria somente "dizer" a matéria, mas também motivar o aluno a um tipo de comportamento que favorecesse seu desenvolvimento, além de outras coisas mais.
        Pode-se considerar, inclusive, que um aluno que desenvolva a habilidade de buscar seus objetivos consiga fazer isso em qualquer dimensão da sua vida. Dessa forma, a educação não se trata simplesmente de aprender -e ensinar - matemática ou português. Se trata de desenvolver as capacidades humanas em diversas dimensões para que o ser humano seja aquilo que está projetado para ser: humano. E o que tem a música a ver com isso? 
       A verdade é que fazemos música, pois somos seres humanos. A dimensão da espontaneidade, da intuição, do subjetivo são também dimensões humanas que podem ser desenvolvidas na educação. Infelizmente, a música e a arte são colocadas meramente como soluções para problemas de outra ordem. Se o aluno tem dificuldade em matemática, certamente a música o ajudará a desenvolver o raciocínio. Se o aluno tem TDAH, a música vai desenvolver sua concentração e memória. E por aí vai...
        Essas ideias, embora verdadeiras, escondem o papel coadjuvante que querem entregar às artes e à música. É por isso que quando uma criança tem dificuldade em música, ninguém diz: "é bom estudar matemática para aumentar sua capacidade musical." A primeira solução que se encontra, geralmente é imaginar que a criança não tem jeito ou dom para aquilo. A segunda é sugerir o abandono da atividade. Atitude absolutamente impensável em outras disciplinas escolares.
        Ademais, a aula de música pode ser até um estímulo negativo. Por exemplo, se o professor começar a incutir a inveja nos alunos, apontando uns como melhores que outros, isso tenderá a estimular a concorrência e desunião dos alunos que no longo prazo se torna absolutamente prejudicial. Ou mesmo nos casos em que a aula de música desenvolve mal estar em sala de aula, da mesma forma que em outras disciplinas. Aliás, tudo depende muito da forma como se ensina.
        Sou da tese de que qualquer professor de qualquer disciplina pode "tratar" um desvio como o TDAH ou TOD. Ou melhor: lidar. Não que ele seja médico ou psicólogo. Nada isso. Mas um professor atento vai saber utilizar recursos que desenvolvam concentração, atenção, raciocínio e memória, independentemente da disciplina que ministra. A música por si só não pode fazer muita coisa, principalmente se a instituição educacional não adota uma metodologia didática. Além disso, na maioria das vezes o aluno tem contatos semanais de curta duração com a música, o que não poderia ser considerado um tratamento.
       Nesse sentido, não há educação musical. O que há é educação humana. A presença da arte no corpo da cultura e da educação está ligada muito mais ao desenvolvimento de habilidades e características propriamente humanas do que à apagamento de incêndios oriundos da uma educação inadequada e deficiente. Resta saber se os seres humanos estão preparados para isso.
        Que haja música!

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